quarta-feira, 11 de maio de 2011

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Esperando Godot: uma obra incriticável?

Diante do desafio de escrever uma crítica de “Esperando Godot” - um texto publicado há 59 anos, encenado inúmeras vezes, analisado à exaustão e consagrado com o grande sucesso de seu autor – preferi não fazer exatamente uma crítica. Isso porque percebi que quanto mais penso sobre o sentido da peça, mais encontro questionamentos. Definitivamente, “Esperando Godot” não encerra uma interpretação: não sabemos de onde vieram os personagens, não sabemos onde estão ou o que esperam exatamente, não sabemos qual o conflito exato e continuamos sem saber para onde vão. Para chegar ao menos a uma analogia de “Esperando Godot”, precisamos compreender o contexto em que Samuel Beckett viveu, como ele interpretava o mundo a partir desse contexto, para então conseguir vislumbrar contornos mais claros do espetáculo em si. Como disse Martin Esslin, em “Teatro do Absurdo”, “Qualquer tentativa de se chegar a uma interpretação clara e certa por meio do estabelecimento da identidade de Godot através de uma análise crítica seria tão tola quanto tentar-se descobrir contornos definidos escondidos por trás de chiaroscuro de uma de tela de Rembrandt pelo simples método de se raspar a tinta”. Então, deixemos Godot de lado por um momento e pensemos em Beckett, seu autor.

Samuel Beckett nasceu em 1906, na Irlanda. Se sua formação anterior já o direcionava para um profundo questionamento do “eu”, o pós-guerra influenciou de maneira decisiva sua obra. Para ele, a linguagem não era suficiente para permitir a expressão exata daquilo que se queria dizer, ela era insuficiente. No contexto da guerra, a linguagem, a diplomacia, não possibilitou que as pessoas se entendessem e as questões primordiais fossem resolvidas. Por outro lado, a França, país em que Beckett vivia, e outros países envolvidos na guerra, entraram num período de depressão econômico-financeira, o que levava à pergunta: o que esperar? Qual o futuro que poderia vir a partir daquilo? Além do Beckett engajado na resistência francesa contra a guerra, podemos vê-lo como romancista incompreendido ou ainda autor de espetáculos para rádio e TV. Tudo participa da constituição de como o autor encara a linguagem. Ele parte do fracasso, quer dizer, tem plena clareza de que a linguagem não é suficiente para que a comunicação aconteça e aposta nos silêncios, repetições, ruídos, e outros recursos.

“Esperando Godot” reflete claramente esses questionamentos quanto à linguagem. Dois homens desenvolvem o núcleo dramático do espetáculo, mas a linguagem não permite que eles se entendam – por mais que pareçam estar desenvolvendo um diálogo, tratam-se muitas vezes de monólogos. Eles esperam por algo ou alguém incerto e que nunca chega. Fica evidenciada a irracionalidade desse homem, que só pode vislumbrar algum tipo de possibilidade de sobrevivência na sua relação incompleta com o outro. Ainda desse ponto de vista, ao mesmo tempo em que Beckett brinca com os clichês da linguagem - as respostas já esperadas para perguntas e comentários banais -, resultando em diálogos aparentemente sem sentido e com possibilidades infinitas de interpretações, ele trabalha com repetições de termos de expressões que reafirmam a falta de sentido daquilo, o nada. É justamente esse paradoxo que permite deslocar o espetáculo do tempo e arriscar modestamente uma analogia.

Em “O que faz o Brasil, Brasil?”, Roberto da Matta recria o dia-a-dia de Robinson Crusoé como se ele fosse brasileiro. Diz que, se tivesse a nossa nacionalidade, o personagem teria uma rede, alguns santos, mas também um terreirinho de umbanda, um campo de futebol, seria seu próprio senhor e seu escravo, seu chefe e empregado e criaria suas leis para depois poder quebrá-las. Se pudéssemos transportar “Esperando Godot” para os nossos dias e contexto e ensaiar uma analogia, imagino o cenário uma sala fechada e os dois personagens na frente de uma máquina, cada um, que lembraria um computador (mas poderia manter algo nonsense). Eles conversam, mas através de chats ou bate-papos. Leem em voz alta o que digitam; o barulho da digitação é muito perceptível. Diversas vezes a comunicação não acontece, já que a linguagem não tem apoio de gestos, entonações, intenções. Além disso, as palavras são modificadas para o “internetês”, com expressões como “td bem?”, ou “blz”. A comunicação não flui.

Esses personagens esperam alguém que mude o país. São parte da enorme classe-média de hoje (não se diz claramente no texto) e enquanto um fala das necessidades físicas, mundanas (carro novo, ipad, casa, etc) o outro responde, no seu pseudo-diálogo, como se compreendesse o assunto do ponto de vista subjetivo, dos sonhos, dos seus anseios. O pano de fundo da espera é o paternalismo, que, segundo o psicanalista Contardo Calligaris, quer que a experiência adulta da autoridade seja moldada pela nossa neurose familiar básica. “O paternalismo acha bom que, para nós, toda figura de autoridade se pareça com uma mamãe ou um papai, cuidadosos e/ou severos. Também o paternalismo acha bom que, do agente de trânsito ao presidente, do professor à enfermeira, as figuras de autoridade pensem que elas podem mandar na gente porque nos amam como os pais amam seus filhos.” Diante disso, os personagens são “bons meninos”.

É talvez por possibilitar uma brincadeira como essa que “Esperando Godot” seja retomado tantas vezes e seja sempre tão atual. Por mais que o homem só exista a partir da linguagem e precise dela para continuar existindo, a linguagem humana, construída historicamente, nunca será completamente eficiente, seja qual for o contexto do qual estejamos falando.