domingo, 19 de abril de 2009

Especialidade: greve

Em uma daquelas aulas de francês que me fazia sentir como se voltasse à quarta série do ensino fundamental – do estilo redação “Minhas Férias” –, tive que, sem haver preparado nada, falar sobre o estereótipo do francês em meu país. Minha mente travou na imagem clássica: um homem de bigode, uma boina – surrada de preferência -, com uma baguete debaixo do braço. Avançando para a parte não explícita da minha imagem mental, pensei nesse prezado senhor suando sobre sua baguete, exalando muito perfume caro escolhido pela falta de banho, falando mal do Sarkozy e fazendo greve.

Ao racionalizar sobre o que, desse estereótipo, correspondia à realidade próxima a mim, percebi que vi pouquíssimos bigodes, algumas poucas boinas, mas me lembro de sentir alguns odores estranhos, apesar de notar que muitos franceses se banham. Baguetes há por toda a parte, carregadas sem muita proteção, no máximo um saquinho plástico aberto numa das extremidades. Sarkozy está, todos os dias, nos principais jornais, sempre acompanhado de pelo menos uma palavra depreciativa. E a greve, ah a greve, esta está tão presente nos meus dias e nunca soube lidar muito bem com ela. Ela cruza meu caminho, eu tento cruzar o dela e nunca nos entendemos muito bem.

Quando conheci a universidade, na minha primeira semana na França, me lembro de algo que chamou a atenção: pichado, no alto do prédio do meu curso, a inscrição “Viva la comuna!!” parecia querer saltar e criar vida. Foi um daqueles momentos em que me senti como se pisasse com um pezinho tímido na história. Maio de 68, muitas boinas e bigodes ambulantes, fumaça de cigarros por toda a parte. Mas era uma realidade distante. Ledo engano. Mais uma semana e anunciam: greve na universidade. Professores e alunos, todos aderiam.

Em 29 de janeiro acontecia a primeira manifestação geral da França em 2009. Contra a supressão dos cargos públicos, pelo ensino de qualidade, contra os pacotes do governo para a crise econômica! Trabalhadores e estudantes estavam juntos, como em 68. Eu estava confusa, a greve cruzava meu caminho, logo, cabia a mim cruzar o dela. Fui à manifestação para tirar fotos. Estava um pouco tensa, apesar de o meu pezinho estar na história francesa, a imagem que eu tinha de greve era a brasileira.

O acontecimento estava previsto para as 11h, em frente à Gare (estação de trem). Eu, com uma câmera fotográfica e medo de apanhar, me surpreendi quando cheguei 10h57 ao local da manifestação e me deparei com vários grupos de pessoas, pequenos e isolados; conversavam tranquilamente. Uma tropa de choque bloqueava a entrada da estação, no mesmo clima dos manifestantes. As 11h em ponto, um aglomerado de pessoas insurgia da curva ao fim da rua perpendicular, que dava de frente para a Gare. Faixas, buzinas e músicas – inteligíveis para mim, pois eram em francês – cantadas em coro. Demoraram cinco minutos para chegar. Mais cinco minutos para cessar. Silêncio. Conversas amenas em novos grupos. A cena se repetiu. Outro grupo, outra música, silêncio. Após 15 minutos, todos partiram, escoltados pela polícia. Saldo da manifestação: nada, nem ninguém quebrado, ruas limpas, alguns bilhões de euros para as universidades (menos que o destinado aos bancos privados), pessoas ainda descontentes.

A greve continuou, nada de aulas. Certo dia, estava em meu quarto e bateram à porta. Era uma moça que falava muito rápido e buscava novos participantes para o sindicato dos estudantes franceses. Era a minha chance de cruzar novamente o caminho da greve. Aceitei. Nas semanas seguintes, fui adotada por um membro antigo do sindicato. Me ligava sempre, convidando para as reuniões. Fui a uma votação, sobre a continuidade, ou não, do bloqueio do acesso à universidade. Há três dias, 66% dos alunos haviam votado pelo desbloqueio. Em frente ao prédio fatídico (“Viva la comuna!!”), uma comissão no alto das escadarias se dirigia aos outros sentados na grama. Os líderes, sentados em cadeiras e fumando incessantemente, perguntavam a quem estivesse por lá – estudante ou não, engajado ou não, inteligente ou não, inteirado do que acontecia ou não – se eles eram “pour” ou “contre” a decisão em questão. Mãos eram levantadas e a coordenadora-mor, após uma varredura com olhos, declarava: “c’est pour le blocage!”.

Num encontro com o companheiro do sindicato, ele me explicou tudo sobre a nova manifestação, de 19 de março, sobre o congresso que aconteceria em abril e a votação para a nova direção do sindicato. Devo ter absorvido cerca de 40% do que ele falou. Eu mais observava seu entusiasmo ao falar, seu engajamento, seu cabelinho semi-comprido, seu croissant e seu café - tudo tão francês, tão maio de 68 - que depois de 20 minutos da conversa agradeci aos céus por ele ter me dado por escrito as propostas das três frentes do sindicato. E aí, fugi, descruzei os caminhos, afinal, entendi qual era a dela.

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